sábado, 14 de março de 2009

AINDA SOBRE Á CRISE


ATUALIZAÇÃO DA ANÁLISE SOBRE A CRISE – março/2009
Fernando Carneiro - uma contribuição

A crise se desenvolve em progressão geométrica e à escala mundial, tudo isso a uma velocidade que analista nenhum consegue acompanhar. O incêndio atingiu toda a floresta e está fora de controle. Enquanto isso os bombeiros usam baldes para apagar o fogo, alguns deles com gasolina dentro.
Em setembro de 2001 o mundo viu um dos mais importantes símbolos do imperialismo americano, as torres gêmeas do World Trade Center, desabarem em razão dos ataques da Al-Qaeda. Sete anos depois, em setembro de 2008, o que ruiu foram os pilares da economia capitalista mais forte do planeta. A crise desta vez não brotou da periferia do capital, não foi fruto das economias incipientes e volatizadas e nem de governos “incompetentes” do terceiro mundo. A crise começou no coração do capitalismo mundial, os EUA.

O modelo neoliberal em crise

A receita neoliberal, construída política e ideologicamente por mais de três décadas, foi soterrada pela crise e ninguém mais ouve falar, pelo menos abertamente, nos neoliberais. Figuras como John McCain (ex-candidato pelo Partido Republicano) e Alan Greenspan (ex-presidente do FED – O Federal Reserve, equivalente americano do BC brasileiro) ultraliberal assumido e que chegou a decretar que o capitalismo tinha superado as crises dos ciclos econômicos, atingido o crescimento perpétuo e ido “para além da história”, hoje defendem a nacionalização dos bancos americanos. Esta “derrota” do neoliberalismo deve, contudo, ser mediatizada por nós. A propalada vitória do Keynesianismo (1) não se deu a partir de uma supremacia teórica ou ideológica, ao contrário, trata-se de uma reação desesperada ao caos instalado no livre mercado. Mais um exemplo do pragmatismo capitalista: para defender o lucro não há limites, passa-se por cima de tudo e de todos. Os preceitos neoliberais, entretanto estão apenas adormecidos, esperando uma oportunidade para voltar à cena.
A crise, cujo estopim foi a explosão da “bolha” imobiliária americana, revelou o grau de “finaceirização” da economia. Essa expressão poderia muito bem ser substituída pela expressão cunhada por Marx ainda no século XVIII, de “capital fictício”, que nada mais é que o crescimento exacerbado do capital financeiro em relação ao capital real. Em outras palavras trata-se de dinheiro que não tem lastro na economia concreta. Em 1980 o volume de capital fictício era 20% maior que toda a riqueza produzida no mundo, em 2006 esse volume era 200% maior, evidenciando a completa submissão do sistema econômico aos imperativos da lógica financeira da acumulação. Além disso a disparidade entre o PIB mundial e o capital fictício revela a fragilidade das operações financeiras realizadas em todo o mundo (veja as tabelas abaixo).

ano capital fictício x riqueza mundial
1980 + 20%
2006 + 200%

ano PIB mundial capital fictício
1980 US$ 10 trilhões US$ 12 trilhões
2006 US$ 48 trilhões US$ 167 trilhões
Fonte: Folha de São Paulo


A crise na economia real e a crise política

A crise financeira atingiu em cheio a economia real. Os indicadores mudam diariamente e seria inapropriado citá-los à exaustão, mas alguns deles são emblemáticos. Senão vejamos: O Japão, cujas exportações despencaram 45,7% em janeiro de 2009, já admite que vive “a maior recessão em um século”. Na Alemanha, só em fevereiro de 2009, foram demitidos 40 mil trabalhadores e o desemprego já atinge 7,9% da população. Na França mais de 2,1 milhões de trabalhadores estão sem emprego, o pior índice desde 1993 e o governo já admite rever, para baixo, as expectativas de crescimento do PIB de 2009 que variavam entre 0,2 e 0,5%. Na Inglaterra o desemprego chega a 6,3% (quase 2 milhões de pessoas – só em 2008) e na Espanha o desemprego atingiu o preocupante índice de 14,4%. Em toda a Europa há mais de 10 mil demissões por dia. A Islândia que há pouco mais de uma década internacionalizou seus bancos (por forte pressão de um governo conservador composto por banqueiros) foi um dos primeiros países europeus a sentir a crise. Solicitou um empréstimo e US$ 2,1 bilhões ao FMI, mas nada disso evitou a quebradeira.a dívida hoje já é maior que seu PIB. Nem mesmo a nacionalização de seus três principais bancos evitou a queda, em janeiro deste ano, do primeiro-ministro Geir Haarde, substituído às pressas pela primeira mulher homossexual a governar o país, Johanna Sigurdardottir.
A situação do Leste Europeu, formado pelos antigos países “socialistas”, é tão ou mais preocupante. O exemplo da Letônia é ilustrativo. Conhecida em 2006 como “Tigre do Báltico” a Letônia colecionava taxas de crescimento de 10% ao ano, a maior da Europa. Atraiu importantes investimentos internacionais (bancos austríacos emprestaram valores correspondentes a 70% do PIB da Áustria). No início do ano a taxa de desemprego chegou aos 8,3%, o salário dos servidores foi rebaixado em 25% e os cortes de subsídios chegaram a 50% em alguns setores da economia. A revolta popular levou à queda, em 20 de fevereiro, do primeiro-ministro. A indicação de Valdis Dombrovski, outro conservador, que afirmou que vai cumprir ainda mais os compromissos com o FMI parece que só agudizou o quadro de crise.
Estes exemplos demonstram a dinâmica intrínseca da crise. Crise financeira que vira crise da economia real, que vira crise social que vira crise política. Esta parece ser uma tendência, que pode ou não se concretizar, mas é certo que a dinâmica aponta para este cenário. Outra tendência importante é o fortalecimento dos grandes monopólios. A quebradeira de pequenos bancos e de setores médios da economia tende a concentrar a produção em grandes empresas transnacionais, ainda que estas também não estejam imunes aos efeitos da crise.

As saídas implementadas no epicentro da crise

Os EUA viram, em 17 de fevereiro, Obama sancionar seu pacote de “estímulo” à economia. Foram US$ 787 bilhões destinados a tentar salvar a economia americana. Uma semana antes seu Secretário do Tesouro, Thimothy Geithner, anunciou estudos para um novo pacote, na ordem de US$ 2 trilhões com o mesmo objetivo. Ocorre que ninguém sabe ao certo como e onde esta montanha de dinheiros é aplicada, muito menos a eficácia de tão dispendioso remédio. Vejamos o exemplo das indústrias automobilísticas (que já receberam considerável aporte financeiro): reivindicam mais US$ 39 bilhões para uma suposta “reestruturação”. Em outras palavras usam o dinheiro público para tentar evitar a falência, mas ao mesmo tempo não dão nenhuma garantia de manutenção do emprego, ao contrário a General Motors planeja demitir 47 mil trabalhadores em todo o mundo. Esta é a síntese da receita de Obama e dos capitalistas americanos: recebem bilhões (quiçá trilhões) de dólares do povo para demitir trabalhadores. Os efeitos globais da crise já começam a interferir no conjunto da economia dos EUA, tanto é assim que o PIB americano caiu 3,8% no último trimestre de 2008.
A situação dos bancos é ainda mais grave. O exemplo do Citibank (Citigroup) é extremamente ilustrativo. Seu valor de mercado despencou e hoje não passa de 10% do que era no início de 2008. O Bank of América e o JPMorgan-Chase (outros dois gigantes) estão na mesma situação, exigindo ajuda de Obama para compensar a onda de inadimplências e a paralisia dos mercados de crédito. A falência é iminente apesar dos bilhões de dólares já destinados ao socorro do sistema financeiro. Discute-se abertamente a estatização de diversos dos 19 grandes bancos americanos. As divergências se resumem a quando e como deve se dar o processo.
A estatização dos bancos, segundo passo da inversão estatal na esfera privada (o primeiro é a injeção de capital público) segue a lógica de salvar o mercado, suas instituições e empresas deixando à sua própria sorte os trabalhadores e o povo. Contudo as receitas aplicadas não parecem estar dando resultado. O concreto é que os índices econômicos e principalmente os sociais estão despencando. Retração, desemprego, recessão são expressões que já fazem parte de nosso dia a dia.
O sistema capitalista, que entre outras coisas se caracteriza pela apropriação individual do que é socialmente produzido, tenta agora nos empurrar a socialização dos prejuízos da crise. Diante desse quadro não há outra alternativa aos trabalhadores e ao povo senão afirmar decididamente: os patrões que paguem pela crise que eles mesmo criaram!

Um comentário a mais

Talvez já faça parte de nosso imaginário a questão da financeirização da economia (ou da criação do “capital fictício” como diria Marx). Nos acostumamos com a produção de lucro sem lastro real. Mas seria de bom tom atentarmos mais detalhadamente a essa questão. Em verdade isso é um grande absurdo, uma aberração criada pela ganância capitalista. Especulação (outro sinônimo para este processo) vem do latim speculum, ou espelho. Se colocarmos um objeto diante de dois espelho teremos uma infinidade de imagens desse mesmo objeto, entretanto os inúmeros reflexos correspondem apenas a um objeto. Assim é no atual estágio da financeirização da economia: vivemos de uma imagem do real. A especulação financeira (que movimenta bilhões de dólares) é uma representação do real, uma ficção. O processo produtivo no capitalismo é extremamente cruel com os trabalhadores, é daí que é extraída a mais-valia, e lutamos diariamente contra esse modo de produção, mas essa “sofisticação” imposta pelo capital é criminosa.
A história é rica em discussões sobre este tema. A usura (lucro obtido sem a produção de bens) sempre foi combatida ideologicamente. Aristóteles, filósofo grego afirmou na “Política” que “A forma [de obter riqueza] mais odiada, e com mais razão, é a usura, que lucra a partir do próprio dinheiro, e não de seu objeto. Pois o dinheiro foi criado para ser usado em permuta, mas não para aumentar com usura (...) logo, esta forma de ganhar dinheiro é de todas a mais contrária à natureza.”
Jacques Le Goff, brilhante medievalista francês escreveu um livro intitulado “A bolsa e a vida”, que nos mostra como o capitalismo emergente impôs modificações estruturais ao cristianismo. A Usura sempre foi tida pelos cristãos como um pecado, como conviver com um sistema baseado na usura? Como evitar que os capitalistas, eles próprios usurários confessos, queimassem no fogo do inferno? A pressão foi tanta que a Igreja inventa o purgatório, local onde os usurários poderiam expiar seus pecados e ascender ao Céu. O capitalismo e os capitalistas podem, desde então, pecar à vontade.


O Brasil nesta nova fase da crise

O Presidente Lula chegou a afirmar que a crise no exterior tinha a forma de uma “Tsunami” mas que chegaria ao Brasil como uma “marolinha”. A queda do PIB no último trimestre de 2008 revelou a verdadeira dimensão da crise: o IBGE registrou uma queda geral de 3,6%, fechando o ano com 5,1% de crescimento (em razão do bom desempenho dos trimestres anteriores). Se projetássemos o PIB tendo como base o último trimestre teríamos fechado o ano com uma queda de 13,6% no PIB. Resultado tão negativo só em mais 5 países, Coréia do Sul, Taiwan, Tailândia, Indonésia e Estônia. Se setorializarmos a queda veremos que a indústria teve uma queda de 7,4% e o investimento em produção caiu 9,8%. Isso somado ao fato de o país ter, desde dezembro, uma média de 8.800 demissões a cada dia. As perspectivas para 2009 estão sendo revistas novamente e não será improvável termos um crescimento perto de zero.
O superávit primário (a economia de recursos para o pagamento das dívidas externa e interna, obtida por meio de aumento de arrecadação de tributos e corte de gastos públicos) de 2008 foi de R$ 118 bilhões. Este valor, contudo não foi suficiente para pagar nem os juros da dívida, que chegaram a R$ 162 bilhões no mesmo período. Se considerarmos o refinanciamento da dívida (a famosa “rolagem”) veremos que esta consome quase a metade (47%) do Orçamento Geral da União. Em outras palavras metade do que o governo gasta durante o ano vai para pagar a dívida pública. O saldo da balança comercial (diferença entre o que é importado e exportado) foi de US$ 24,7 bilhões, bem menor que o dinheiro remetido pelas multinacionais capitalistas ao exterior que somou US$ 33,8 bilhões.
Por onde se olha se vê crise. E aqui cabe uma crítica ao governo Lula. Não estamos falando de sua política neoliberal e pró-capitalista, isso todo o povo já conhece. Desde o primeiro momento Lula tem se mostrado um defensor ferrenho do receituário de Bush e Obama, aplicando duros golpes à classe trabalhadora e pagando religiosamente os juros dessa dívida imoral contraída principalmente pela ditadura militar. Mas há que se ressaltar o caráter irresponsável e cínico diante da iminência e da gravidade da crise. Enquanto os demais governos burgueses alertavam a população para os riscos e tomavam medidas, ainda que paliativas, Lula mostrava arrogância e irresponsabilidade negando que a crise chegaria ao Brasil. Fosse um governo sério estaria fazendo uma profunda auto-crítica à sociedade brasileira.
Sua postura diante do caso das demissões na EMBRAER é sintomática. A EMBRAER, privatizada em 1994 pela bagatela de R$ 154 milhões (poucos meses depois valia R$ 1,7 bilhão e hoje ultrapassa os R$ 17 bilhões) é líder mundial na produção de jatos de médio porte. Hoje seus principais acionistas estão na bolsa de Nova York e nos fundos de investimentos americanos. Mais de 50% de seu capital é internacional. Seus 21 mil trabalhadores construíram em 2008 nada menos que 204 aeronaves e a previsão para 2009 é de 242. Só em 2007 registrou uma receita de US$ 7 bilhões e um lucro de R$ 657 milhões. Tudo isso às custas da exploração dos trabalhadores. A jornada de trabalho (43h semanais) é a maior do mundo no setor embora a remuneração seja uma das piores do mundo (ocupa o 15º entre as empresas similares). O governo, através do BNDES e da PREVI detém perto de 20% das ações e nesta condição tem acesso privilegiado às decisões da direção. Há quase 90 dias sabia que as demissões viriam e se calou. Pior, como acionista teria poder de vetar as demissões. Mais uma vez calou. Em vez de lutar para defender o emprego Lula editou a Medida Provisória 442 que autoriza o socorro aos banqueiros. Esse exemplo demonstra claramente sua opção de classe diante da crise.


As tarefas dos movimentos sociais

Estamos diante de uma conjuntura crítica. Os trabalhadores e o povo precisam estar unidos para enfrentar a crise e o governo Lula. Precisamos colocar os interesses populares acima de interesses particulares e corporativos. A hora é de unidade. Recai sobre as Centrais Sindicais, sobre os movimentos sociais organizados, os partidos de esquerda, a juventude e os trabalhadores do campo e da cidade a responsabilidade de, sem negar as diferenças existentes, construir poderosas mobilizações para evitar que paguemos pelos efeitos nefastos dessa crise, que nunca é demais lembrar, não foi obra do acaso ou um acidente de percurso, ao contrário foi fabricada pelos patrões.
Neste contexto a luta contra a criminalização dos movimentos sociais assume importância fundamental. No momento em que os trabalhadores começam a dar passos concretos na unificação das lutas assistimos ao recrudescimento dos ataques desferidos contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ninguém menos que o ministro-latifundiário-amigo de banqueiros fraudadores, o Sr. Gilmar Mendes, presidente do STF, destila todo seu ódio contra a luta pela reforma agrária. A tentativa de criminalizar o MST atinge a todos os movimentos sociais e reveste de maior importância ainda a luta a criminalização.
Neste momento assume importância estratégica a unidade dos movimentos sociais organizados, a defesa do emprego e do salário, a ampliação dos investimentos sociais e a reestatização de todas as empresas públicas privatizadas pelo governo brasileiro.

Plataforma de luta

a) - Estabilidade no emprego;
b) - Reintegração dos demitidos; Extensão, para dois anos, do seguro desemprego; Isenção de impostos e taxas públicas para os desempregados;
c) - Redução da jornada de Trabalho sem redução de direitos e de salários. Não à flexibilização dos Direitos Trabalhistas!;
d) - Pela suspensão de execução das dívidas nos financiamentos habitacionais populares e fim dos despejos. Por um amplo programa de construção de moradias populares de qualidade e com subsídio integral do Estado
e) - Estatização, sem indenização e sob controle dos trabalhadores, de todas as empresas que demitirem em massa;
f) - Manutenção e aumento dos investimentos em políticas públicas, saúde, educação, moradia, saneamento etc;
g) - Em defesa dos serviços públicos e do funcionalismo; Cumprimento dos acordos feitos com o funcionalismo público;
h) - Em defesa dos aposentados do setor público e privado; Aumento das aposentadorias pelo mesmo índice do reajuste do salário mínimo; Recomposição das aposentadorias ao valor, em salários mínimos, que tinham quando foram concedidas;
i) - Suspensão imediata do pagamento das dívidas externa e interna; Estatização, sem indenização e sob controle dos trabalhadores, do sistema financeiro. Disponibilização do crédito em função das necessidades da população e não dos banqueiros; Nenhum recurso a mais para bancos e grandes empresas; Taxação agressiva das grandes fortunas;
j) - Petrobrás e o petróleo 100% Estatal; Reestatização, sem indenização e sob controle dos trabalhadores, de todas as empresas estratégicas para o país;
k) - Realização de uma Reforma Agrária e Urbana visando a criação de emprego e a melhoria das condições de vida da população


(1) Keynesianismo é a teoria econômica consolidada pelo economista inglês John Maynard Keynes que afirma o Estado como agente indispensável de controle da economia.

Nenhum comentário: